8.6.07

O sonho celta de Hugo Pratt

Os mitos são eternos na medida em que são imanentes. A sua força vem-lhes do facto de poderem sempre, a qualquer momento, em todas as circunstâncias, incarnar na linguagem e constituir o quadro coerente de uma nova narrativa. Esta narrativa, tal como é apresentada, integra dados pontuais, preocupações contemporâneas de elementos antiquíssimos: constitui a actualização do mito, a sua valorização num determinado contexto, a sua abertura ao mundo real da compreensão. Ora, na nossa época, que narrativa pode dar melhor testemunho da permanência do mito do que a Banda Desenhada, expressão contemporânea, técnica popular plena da aliança da linguagem literária com as artes gráficas, e sobretudo meio ideal para a difusão do imaginário?

É neste espírito que se deve examinar a obra de um autor tão inspirado como Hugo Pratt. O seu interesse pelo mito manifesta-se desde o início da carreira. E o próprio personagem de Corto Maltese é a incarnação de uma figura mitológica, deus ou herói, de qualquer modo homem de todas as épocas e de parte nenhuma, perpétua errante num mundo em mutação, sobre cujas angústias e fantasmas ele reflecte. Com efeito, em última análise, Corto Maltese é mais uma testemunha impassível do que um actor dos dramas em que se vê envolvido. Se possui essa espécie de aura que marca os homens votados a destino excepcional, é porque o autor quis que ele fosse simultaneamente deus e homem. Como homem, está sujeito á lei comum do sofrimento, do desespero, da aventura, mas como deus desenreda o complexo emaranhado dos acontecimentos. E ele não é mortal a não ser na medida em que pode escolher a data e a hora a da sua morte, o que faz dele um ser excepcional.



Hugo Pratt, Corto Maltese As Célticas, Prefácio de Jean Markale


Imagem: O meu Herói...

5 comments:

Francesca/FF:L said...

Corto's world : "I don't like hawking 'round other people's memories... That wasn't part of the deal... when I was born."

( Hugo Pratts words)

Jorge P. Guedes said...

Gosto imenso desta imagem, que por acaso já conhecia, em que a coexistência pacífica do gato e da ave abafam a própria figura do herói.
Homem e Deus, porque o autor assim o quis - a fantasia que nunca morre se assim o quisermos todos.

Um bjnh.

Bárbara said...

J.G:

Lindas as tuas palavras.

Anonymous said...

três dias sem visitar o teu blog e lá dou com mais uma mão cheia de coisas que, sim, também me dão muito prazer. Agora fico-me pelo comentário desta, do meu herói por excelência. Por vezes esqueço que é uma fábula, mas foi com o Corto que aprendi a sonhar de olhos abertos, logo, por certo existe.
Beijo grande.

Bárbara said...

Acredita...existe mesmo.

Beijinho