13.11.06

Helena de Tróia dança em cima do balcão

O mundo está cheio de mulheres
prontas a dizer-me que devia ter vergonha,
se eu as deixasse. Deixa de dançar.
Vê se aprendes a dar-te ao respeito
e um emprego.
Pois. E o ordenado mínimo,
e varizes, de estar de pé
no mesmo sítio oito horas seguidas
atrás de um balcão de vidro,
tapada até ao pescoço, em vez de
nua como uma sande de carne.
A vender luvas, ou qualquer coisa do género.
Em vez daquilo que, de facto, vendo.
Tem que se ter talento para impingir uma coisa tão nebulosa e sem forma.
Explorada, diriam elas. Sim senhora, não
tem que saber, mas posso escolher como e ficar com o dinheiro.

Eu sou valor acrescentado, a sério.
Tal como os pregadores, eu vendo visões,
como anúncios de perfume, desejo ou sucedâneo. Como com as anedotas
ou a guerra, o truque está em encontar a latura certa.
Aos homens vendo, com juros, as piores suspeitas:
que tudo está à venda,
e a retalho. Eles olham para mim e vêem
um assasinato com uma serra eléctrica prestes a acontecer,
quando coxa, rabo, tatuagem, rego, mama e mamilo
ainda estão juntos.
Olhem como eles se enchem de ódio,
os meus adoradores cheios de cerveja!Isso, ou então um remeloso
e desesperado amor. Vendo as filas de cabeças
e olhos revirados, suplicantes
mas prontos a morder-me as canelas, compreendo as cheias e os terramotos
e o desejo incontrolável de calcar formigas. Mantenho o ritmo,
e danço para eles porque eles não conseguem. A música cheira a raposas,
tesa como metal quente
a rasgar as narinas
ou húmida como Agosto, envolta em névoa e langorosa
como o dia seguinte numa cidade pilhada,
quando já trataram das violações, e da matança,
e os sobreviventes vagueiam,
vira-latas, à procura de comida
e só encontram frio cansaço.
A propósito, o sorriso,
O Sorriso é o mais cansativo.
Isso e fingir
Que não os ouço.
E não ouço porque, a final de contas,
sou estrangeira para eles.
A língua que aqui se fala é só guturais àsperas,
óbvias como lascas de presunto,
mas eu venho da terra dos deuses
onde os sentidos são oscilantes e oblíquos.
Eu não me abro com qualquer um, mas encosto-me e sussurro:
A minha mãe foi violada por um cisne sagrado.
Dá para acreditar? Se quiseres podes convidar-me para jantar.
È isto que eu digo a todos os maridos.
Há cada passarão perigoso por aqui.

Não que alguém por estas bandas
perceba, excepto tu.
Os outros haviam de gostar de olhar para mim
e não sentir nada. Reduzir-me a componentes
como numa fábrica de relógios ou num matadouro.
Esmagar o mistério.
Emparedar-me
no meu próprio corpo.
Haviam de gostar de me atravessar com o olhar,
mas nada é mais opaco
do que a transparência absoluta.
Vejam- os meus pés não tocam no mármore!
Como um sopro ou um balão, começa a subir.
Pairo no ar acerca de vinte centímetros,
Pensam que eu não sou uma deusa?
Desafiem-me.
Isto é um cântico tocha.
Toquem-me e ardem.

Margaret Atwood, Morning in the Burned House, 1995
Tradução de Maria Helena Dias Loureiro

Desço contigo a calçada da cidade que nos apresentou.
Hoje, naqueles dias, em lugares cheios e vazios, e nós,
cansadas da música, de estar de pé, esperamos algo,
o não acontecer.
O que pensar? Já não se bebe o chá, e os cigarros acabaram.
O tempo passa com uma tendência incorrigível,
a amizade celebra-se em naturais e elegantes conversas.

Bárbara
Para: Sandra Costa

3 comments:

Lana said...

a amizade é e será um dos fenómenos mais bonitos da existência humana.
mm sem nos conhecermos já gosto de si ...
é só preciso ouvirmos e estarmos atentos aos outros que, como nós, gostam de partilhar coisas. parece baloufo mas é verdadeiro o que aqui digo.
este seu post é o máximo!!
bjs e até breve.
Lana

Lana said...

Olá!
voltei para ler este post com mais calma.
cada vez gosto mais do que escreveu.
1 beijinho e até breve.
lana

Sandra Costa said...

Bárbara,

Entre o vórtice e a comoção mais serena, há palavras tão «agramaticais» querida amiga.
Em gramática, a amizade é uma língua sempre estrangeira para todos nós. Intraduzível.

Não me impeço de te dizer:
Gosto muito de ti.

(sandra)