9.12.06

Ela canta, pobre ceifeira… (Fernando Pessoa)

Escutar, ao longe, uma mulher que, na sua lide quotidiana (no ardor cíclico do seu mundo), exprime em mezzo voce um cantar genuinamente popular, traz a mim a consciência dos tempos primordiais. Não falarei aqui das coisas primeiras que, como diria um poeta, seriam verdes ou azuis, com água pela cintura... (António Franco Alexandre) não pretendo tal imagem desbotada pela sólida imaginação de quem o pensou inicialmente e escreveu… procuro sim perceber de onde vem aquela melodia ancestral que preenche os tímpanos trazendo algo com que me identifico… procuro olvidar as razões de uma remota reminiscência genética que brota e eleva-se no meu pensamento como o vento que toca ao de leve na face e segue o seu caminho depois de subtilmente nos afectar os sentidos…Não quero saber porque canta…não sou suficientemente astuto para formular tais teses a que nem Pessoa, a meu ver, ambicionou realmente responder… Qual a razão para esse canto me provocar e me elevar até às líricas rodas ancestrais da vida? Tão cíclicas como a minha presente escrita, que ainda não fugiu a essa interrogação e repete-a sem cessar até à exaustão…
(…)
- Porque o poder do homem é desconhecido…
- Porque o poder da alma é majestoso…
(…)
Porque possuo dentro de mim um sentido de pertença que se activa facilmente com tudo o que se ergue e me traga um sabor culturalmente genuíno do contexto espacial natal… faz com que me aperceba que não sou verde ou azul, com água pela cintura, mas sim, como outros que vivem a meu lado, um reservatório pretérito de uma alma original que, num mito de movimentos giratórios (quase um verdadeiro samsara), penetrou no coração de uma colectividade e, com ela, permaneceu em rito sem sair desta realidade espiral do tempo.
Na amargura quotidiana desta vida, alguns desses reservatórios de água (que só cresce com a nossa atenção) perdem-se no tempo e se libertam finalmente das constantes reencarnações, não por ter atingido a perfeição de um Brahman, nem mesmo por ter expurgado os pecados do mundo ou ter atingido o seu futuro histórico. Afundam-se pela nossa falta de atenção para com as coisas primordiais, para o cuidado da nossa alma … do nosso bairrismo sadio.
Na ânsia presente deste mundo amorfo, procuro, com voraz insistência, ouvir os sons e seus jocosos remendos invocados nas cordas vocais da dita mulher e guardar essa alma dentro dos meus sentidos… só assim guardarei o pouco que resta das nossas coisas primeiras que, aos poucos, morrem neste desvario espelho de água que se parte, levando assim a pouca água de uma atenção ulterior. Emerge, como uma névoa solitária, o vazio de não saber onde jazem os nossos antepassados espirituais… as nossas coisas pequenas… a pertença da nossa alma… a alma da nossa pertença… a conjugação do nosso eu com a comunidade… o mais genuíno dos sentidos… o primordial…

Duarte Freitas, 11 de Maio de 2006

Elogia-se a amizade numa carta...
Imagem: Porque as palavras às vezes já são tão representativas que não existem imagens que as representem, meu amigo....preferi assim...

Bárbara e Duarte

7 comments:

Jorge P. Guedes said...

Um texto mui bem trabalhado, com uma visão da vida e do que nela há de primordial. A procura da descoberta das raízes e do eterno porquê das coisas.
Um baile de afectos no salão da alma visitado.

Um bjnh.
Jorge G

Bárbara said...

Sim, um baile de afectos onde muitas vezes dançamos...são aquelas danças que nunca acabam.
Bj.

Lana said...

muito bem muito bonito e por tudo isso mto obrigado!!
1 sorriso luminoso
Lana

Bárbara said...

Outro para ti Lana. Ainda bem que gostaste.

Nuno Oliveira said...

Uma análise escatológica do bucolismo que com nada disso se preocupa. Um oximoron na sua essência. No entanto, a análise repetida dentro desta perspectiva helicoidal do devir é a prova de que o tempo tem sempre algo de reinventado a partir do arquétipo. Para saber mais:
http://www.submarino.com.br/books_productdetails.asp?Query=ProductPage&ProdTypeId=1&ProdId=255529&franq=134562

Nuno Oliveira said...

Correcção ao endereço (trata-se apenas da capa do conhecido livro de Mircea Eliade, 'O Mito do Eterno Retorno'):
http://i.s8.com.br/images/books/cover/img9/255529_4.jpg

Bárbara said...

:))))!!! Vocês sempre com a mesma discussão!!! Ai o tempo!!!!